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Navio Hospital

Permitam-me apenas um outro apontamento de um enorme leque que guardo para sempre. Trata-se do Junipero, um pescador da Nazaré que apareceu a bordo do N/m "Gil Eannes" aparentando um adiantado estado de Tp. Penso que é correcto que se diga nesta altura que eu sou apenas um Comandante da Marinha Mercante e não um médico. Peço pois a todos os médicos que lerem este apontamento a máxima benevolência para qualquer imprecisão. O Navio estava também na Groenlândia em plena faina de distribuir isco para a pesca. Os hospitais de terra não aceitavam doentes com aquela sintomatologia por medo de contágio e, por consequência, tínhamos de manter vivo o doente a bordo até à nossa chegada um porto da Terra Nova que distava cerca de dois mil quilómetros (mil e trezentas milhas marítimas para quem sabe de coisas naúticas). Para mantermos o Junipero vivo foi necessário consumirmos todo o oxigénio medicinal que havia a bordo, os hospitais de terra não nos valeram porque tinham as suas reservas muito baixas, e, a única solução de que pudemos dispôr para manter aquele vida, foi utilizar o oxigénio da casa da máquina ou seja o oxigénio impuro que, normalmente é usado nas soldaduras. E com ele vivo (depois de várias extremas unções que o Padre lhe deu) chegamos a St. John’s da Terra Nova onde foi internado num hospital especial para doenças contagiosas e onde recuperou o suficiente para mais tarde ser repatriado para Portugal. Não há muitos anos ainda o soube fazendo a sua vida normal lá para os lados da Nazaré. Neste caso, o mérito não pode ser dado na totalidade aos médicos ou a quem com eles colaborou pois, muito sinceramente, creio que Deus também foi um óptimo colaborador. Nesses tempos, até Deus fazia parte da nossa Equipa, e a prova disso, apesar de todas as competências é que, durante doze anos, nunca nenhum doente faleceu a bordo do Navio. Aliás, no caso de falecimento de alguém, num qualquer navio, era também o N/m "Gil Eannes" que ia ao encontro desse navio, recolhia o corpo do defunto, fazia a bordo o seu caixão, eram-lhe prestadas cerimónias a bordo, e depois a urna era depositada no talhão dos portugueses nos cemitérios de St. John’s, na Terra Nova, ou Hollsteinborg (porto da costa Oeste da Groenlândia), onde ainda hoje estão aqueles que pereceram e a quem a tripulação do N/m "Gil Eannes" cuidava das suas sepulturas, sempre que aportávamos a tais locais.


Também na morte, a acção humanitária do N/m "Gil Eannes" não foi nunca desprezada.

Quantos familiares das comunidades de Homens do Mar de Ílhavo, Aveiro, Lisboa, Porto, Setúbal, Nazaré, Peniche, Ericeira, Matosinhos, Portimão, São Miguel (Açores) e outras localidades, por não terem junto a si os seus mortos, os não choram, ainda, sabendo-os longe?

 

Mário C. F. Esteves
(Comandante do Navio Gil Eannes de 1959 a 1971)


Lisboa, 18 de Janeiro de 1996

 

 

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